quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Sobre o tato e as fragilidades ...


Descobri uma doença curiosa. Uma síndrome. Síndrome como se sabe é o nome que os cientistas dão às doenças que não  entendem direito. Então, eles as reunem em cachos, em conjuntos de sintomas, para parecer que tem o controle. Síndromes são doenças de respeito, levam o nome do cientista que as descobriu. Pois a donça que desccobri é a Síndrome de Nagali. Os indivíduos portadores (quando se tem uma síndrome deixam de ser pessoas comuns, passam a ser indivíduos) caracterizam-se pela ausência total de digitais. Diz a wikipédia:
Além da falta das impressões digitais as pessoas portadoras da síndrome costumam ter unhas, dentes e cabelos mais frágeis e a pele apresenta manchas marrons irregulares pelo corpo. No caso de indivíduos saudáveis que perdem as digitais com o passar do tempo (acidentes, problemas biológicos associados ao clima e contato com produtos químicos) a identificação é feita pelos dedos maiores dos pés ou pela arcada dentária. A alternativa mais viável para reconhecimento é a biometria onde dispositivos eletrônicos identificam o formato do rosto e da íris – únicos em cada pessoa. Até aí tudo bem(?!). O que me assustou foi o fato de que, sem as  digitais, as pessoas portadoras (quer dizer, indivíduos portadores) passam a ser impossibilitados de segurar um copo, por exemplo, ou folhear livros. Fiquei  apavorado após descobrir a última impossibilidade. Faço amor  com os livros quando leio. Tal qual uma namorada gosto de os folhear descompromissado, sozinho no quarto escondido, enquanto as palavras me acariciam de leve. Não imagino-me deixando outro folhear por mim. Imagine você namorando enquanto você fala com  a sua namorada e,  ao invés de você tocá-la, é outro que faz isso enquanto vocês tratam de intimidades. Com meus livros não aceito Ménage a troi. Acho que tenho mais ciumes de meus livros que de qualquer outra coisa. Não poder tocá-los sob ameaça de deixá-los cair e espatifar as narrativas em pleno tapete me seria muito triste.Nem quis saber da tal de biometria. Me assusta pensar que tenho que ter meu rosto identificado por aparelhos eletronicos para voltar a ter tato com as coisas que amo. Os autores que amo conhecem meu rosto. Vivem em comum-união comigo. Cada vez que leio Camus, Alberto Caeiro, Willliam Blake, Adélia Prado, Mario Quintana, não preciso que dispositivo eletrônico algum identifique meu rosto Ele se confunde com as páginas que leio e me torno algo que os livros bem sabem e que não conto a ninguém. É uma intimidade que só eles podem conhecer. Somos amantes. Mas se eu não tiver digitais, como vou poder tocá-los. Estarão frágeis (ou estaremos nós?) . Estaremos distantes como a ilha de Saramago  no "Conto da ilha Desconhecida". Por não poder tocar e sentir a superfície, não chegaremos mais ao fundo de nossas essências. Nos perderemos no abismo de nossa falta de intimidade e nos recolheremos ao vazio do mundo das pessoas desprovidas de tato. Aí constatei uma coisa muito mais triste. O mundo está cheio de pessoas que não querem sentir nada. Possuem digitais, mas se escondem sob as luvas da dissimulação. Decidem não se aproximar por medo da partida definitiva. E se privam das marcas significativas que poderiam somar a suas vivências. Existe tanto vazio pelas ruas, tantas fragilidades nos cabelos da alma dos transeuntes. De vez em quando percebo uma mão tímida que tenta sair debaixo da luva das camadas que criamos para nos defender dos sofrimentos que os outros podem nos causar. Esquecemos de uma coisa essencial. Nos falta tato. Mas as digitais não nos impedem de tocar os outros.Os outros temos ao longe. O pior de tudo  é esquecer de folhear as páginas de si. Perdemos aos poucos, sem perceber a capacidade de tocar a nós mesmos. Contra isso, não há biometria que nos salve...

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. As informações são estarrecedoras...
    ...a questão de não segurar, firmemente, um copo d'água, folhear livros, enfim... e de fato, as luvas da dissimulação são a pior cegueira q um ser humano pode ter!

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  3. sem perceber,por quatro anos e pouco fui vestindo essas luvas... justamente pelo mêdo da aproximação...a tal partida definitiva! Nos privamos do contato direto com os outros para evitar um "possível" sofrimento futuro,mas não percebemos que alimentamos e aumentamos um sofrimento maior e presente que é o sofrimento da solidão,do isolamento,da ausência de sentimentos(amor,saudade!) Isso mesmo,saudade! Pois quem se priva de amar também se priva de sentir saudade!!!! Sentir saudade de quem? De que? se não ama/amou!!!! Muito lindo esse teu texto!!!! obrigado por escrever coisas tão maravilhosas e significativas com as quais me identifico muito!

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